Trabalhava no CAJE – Centro de Atendimento Juvenil Especializado fazia cinco anos e sempre procurei pautar o meu trabalho baseado no cumprimento do meu dever profissional e no respeito aos adolescentes aos seus familiares, não saberia dizer exatamente o porquê, mas sempre acreditei que não estava trabalhando ali por acaso e que Deus havia reservado uma missão específica para mim naquele lugar. Muito embora ainda não soubesse o que Deus queria exatamente de mim. Comecei a compreender essa missão numa tarde de quarta feira em que estava de plantão e o telefone tocou, era da DCA. Delegacia da criança e adolescente. Disseram que o meu filho estava preso e que eu precisava comparecer urgentemente à Delegacia. Foi muito difícil pra eu ter que ir a ali dessa vez na condição de mãe do adolescente infrator, e depara-me com aquela cena tão cotidiana do meu trabalho. Mas dessa vez tão chocante, pois se tratava do MEU FILHO! Ele estava algemado, triste e cabisbaixo. Eu estava acostumada ver aquela cena quase que diariamente, mas não com o meu filho! Faltou-me terra firme nos meus pés, o meu mundo parecia está desabando, embora soubesse que necessitava ser forte naquele momento foi impossível conter as lágrimas e o choro. Veio à tona o sentimento de culpa e a indagação onde foi que eu errei?
Estava casada a mais de 20 anos, na época, e embora soubesse dos valores morais a cerca da honestidade, da dignidade que sempre norteou a vida da nossa família e da formação moral e religiosa que sempre procurei passar a cada um dos meus filhos, naquele momento era como se tudo isso houvesse falhado, senti-me incapaz de continuar trabalhando no CAJE, a sensação era de total impotência. Pois me indagava: se não dei conta de cuidar do meu próprio filho, como vou ser capaz de fazer algo por esses adolescentes? Foi esse o primeiro pensamento que me veio à cabeça. Sentimento esse mais tarde compartilhado com o meu chefe que me deu muita força naquele momento difícil e crucial. Falei com ele das minhas dúvidas, medos e incertezas, disse-lhe que não tinha mais condições psicológicas e moral de continuar trabalhando naquele lugar. Pedi a minha transferência, ou então que ele me colocasse a disposição da Secretaria a qual sou vinculada, pois eu não me sentia capaz de trabalhar ali. Mas o meu chefe me interrompeu e dizendo: “Que você não tenha condições psicológicas para trabalhar aqui eu até compreendo, mas dizer que não tem condições moral não aceito isso! Todos nós aqui te conhecemos e sabemos que se o seu filho veio parar aqui não é culpa sua!”
Essa foi a primeira das cinco passagens dele pela instituição. Depois que ele saiu de lá procurei ajuda profissional, governamental em vão em todos os lugares que se possa imaginar, mas não obtive êxito, pois os processos eram lentos e burocráticos. Enquanto isso ele continuava sua escalada no cometimento de atos infracionais, fazia as piores besteiras em nome da droga e do grupo no qual estava inserido. Até que finalmente recebeu uma internação por prazo indeterminado. Ele ficou um ano e sete meses internado no CAJE. Foram os dias mais terríveis e difíceis de toda a minha vida. E eu que já estava vivenciando um processo depressivo e de estrees relacionado ao trabalho, cai numa profunda depressão e angustia. Pois sendo eu conhecedora das rebeliões que aconteciam no CAJE, dos constantes casos de mortes naquela época, dos suicídios que acontecia naquele lugar, entre outros detalhes, eu passava as noites pensando em como ele estaria naquele momento? Será que estava com frio? Será que estava sendo ameaçado por outros adolescentes? Eram inúmeras perguntas sem respostas. Os médicos vendo todo o meu sofrimento decidiram por me afastar do CAJE, primeiro com longos períodos de licenças médicas e depois me afastaram definitivamente me transferindo para outra unidade. Mesmo assim eu continuava passando noites sem dormir, e o pouco que conseguia dormir tinha pesadelos terríveis, outras vezes acordava no meio da noite chorando pensando nele, todas as noites antes de dormir eu pedia a Deus que o meu filho amanhecesse vivo no dia seguinte. Havia alguns dias que queria fugir daquela realidade tomava altas doses de tranqüilizantes para dormir, às vezes exagerava na dose o que resultava na minha internação hospitalar. Tentei contra minha própria vida, foram ao todo seis tentativas de suicídio, tamanho era o meu desespero emocional.
A essa altura já não tinha mais a visão da funcionária que estava ali somente para cumprir seu horário de trabalho sem querer se envolver nas causas sociais ou nas chateações que uma tentativa de mudança no paradigma institucional poderia acarretar. Agora eu era a mãe, que enxergava além dos muros da instituição, era a usuária do serviço, e como toda cidadã que pagava impostos queria falar da minha insatisfação com um sistema, que a meu ver não estava ressocializando ninguém. Eu havia prometido a mim mesma que meu filho sairia dali ressocializado, sendo alguém melhor para ele mesmo e para a sociedade, algo precisaria ser mudado!
Percebi uma necessidade enorme na capacitação de alguns servidores, que embora não fossem culpados por um sistema deficiente, tinham uma visão limitada, como eu já havia tido um dia. Eu achava que os adolescentes do CAJE tinham boa vida, pois tinham escola, psicólogo, dentista, médico, piscina, cinco refeições diária. Mas de repente percebi que tudo aquilo funcionava de maneira muito precária e não conseguia atender a todos de maneira satisfatória.
Eu já conseguia ver a problemática que vai além do saber profissional. Mas parecia que o fato de ser funcionária da instituição, pesava mais em mim do que em qualquer outra mãe de interno. Todas as vezes que demonstrava a minha insatisfação isso era visto como uma afronta institucional e era encaminhado um relatório de ocorrência meu a Vara da Infância e Juventude – VIJ. Era como se eu estivesse sentenciada junto com meu filho, às vezes tinha a impressão que pelo fato de eu ser conhecedora das dificuldades que a instituição passava algumas pessoas achavam que eu tinha a obrigação de compreender e aceitar passivamente as falhas de um sistema que era precário no seu funcionamento, que não ressocializava ninguém, e não precisava ser nenhuma especialista para saber disso, mas alguns pareciam querer tampar o sol com a peneira, fingir que nada disso existia, aceitar tudo como estava. Inclusive eu enquanto somente servidora também já havia adotado essa postura um dia.
Mas como mãe sentir o desejo que tudo fosse diferente, eu não poderia mais me calar, omitir. E essa foi a postura que adotei no segundo momento, quando resolvi ir à luta e não ficar somente lamentando e chorando as minhas dores. O meu filho e mais ou menos 100 adolescentes da instituição não estudavam naquela época, tinha seus direitos mais básicos negligenciado por diversos fatores que se instalavam na instituição, entre eles a superlotação. Tudo que eu mais desejava era cumprimento efetivo do Estatuto da Criança e adolescente - ECA. Parecia simples, mas não era.
Troquei a vergonha inicial que me paralisava pelo desejo de ao menos sonhar com CAJE melhor e mais digno para todos, sabia que meu filho não iria usufruir dele, tinha consciência que esse é um processo lento e gradativo que somente as gerações futuras iriam usufruir, mas entendi que algo precisaria ser feito. Logo descobrir o poder da sociedade civil organizada, juntei-me com outras mães, pais, estudantes universitários, profissionais liberais, uma advogada, promotores da VIJ que nos apoiaram parlamentares entre outros profissionais que doaram seu tempo e disposição e assim nasceu em Brasília, a Associação de Mães e Amigos dos Adolescentes em situação de Risco – AMAR/DF. E juntamente com outros Órgãos de Defesa e Proteção à criança e ao adolescente começamos nos unir para tentarmos mudar o rumo da história daquela instituição.
Reuníamos semanalmente com a direção do CAJE, levávamos sugestões de mudanças, reclamações dos adolescentes e familiares, reuníamos com o Ministério publico, com o Juiz da Vara da Infância e Juventude, Defensoria, fizemos inúmeras articulações com outros órgãos de defesa do direito da criança e adolescentes. Uma das maiores vitórias, enquanto Associação, enquanto Associação foi entregarmos, conjuntamente com o Fórum de entidades de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente do DF e a AMAR o Dossiê CAJE ao Secretario do conselho de Defesa dos Direitos de Defesa da Pessoa humana (CDDPH). A partir da entrega desse relatório foi instaurada uma Comissão Especial, na qual em nome da AMAR fui a representante das mães dos adolescentes na comissão inicial que resultou no pedido intervenção Federal no CAJE.
Ousaria a dizer que o CAJE nunca mais foi o mesmo, sei que ainda está longe do modelo ideal, mas muita coisa mudou de lá pra cá.
A minha visão também mudou bastante, ampliei meu modo limitado de ver a vida e o meu trabalho, pois fui obrigada a aprender a luz da experiência e da dor. Uma mudança interior iniciou na minha vida e na vida da minha família. Precisei passar por várias terapias de ajuda, até compreender o processo que se passava dentro de mim, conseguir captar o processo de mudança interna, depois de longos anos de terapia e tratamento médico hoje é impossível ver tudo isso com indiferença, tenho uma visão mais ampliada, pois conheço a dor e o de sabor de ter um filho internado numa instituição de internação. Conheci de perto e pude vivenciar a triste e às vezes solitária peregrinação de acompanhar passo a passo cada etapa do cumprimento de uma medida sócio educativa que de certa forma nós mães e alguns poucos pais também somos penalizados. Vivi todas as suas conseqüências.
E para eu que sou funcionária da instituição foi ainda mais danoso, pois estive a beira de uma sindicância administrativa por que alguém achou que eu estava cobrando demais, incomodando demais por que ousei a sonhar e lutar pela mudança. Mas graças a Deus não puderam seguir em frente com a tal sindicância, pois a comissão de sindicância entendeu que: “DENUNCIAR VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS É DEVER DE TODO SERVIDOR PÚBLICO”. Esse foi o texto final da comissão que deu por arquivado o processo de sindicância.
Recordo-me que certa vez conversando com um psicólogo que atendia meu filho na instituição ele disse: “Você ainda vai agradecer muito a Deus por tudo isso que está acontecendo.” Naquele dia, eu ainda não havia compreendido a dimensão do aprender à luz da experiência e discordei veementemente do que ele havia falado. E disse que Jamais poderia agradecer a Deus por algo tão ruim e traumatizante que estava acontecendo na minha vida e na de toda minha família! Hoje olhando para trás, vendo tudo que aprendi nessa escalada profissional e pessoal e para o aprendizado que veio com todo esse sofrimento, já consigo agradecer imensamente a Deus por ter permitido que tudo isso tenha acontecido para minha evolução como ser humano, pois passar por tudo isso certamente me fez um ser humano melhor, agradeço a Deus por me proporcionar a chance de como profissional viver os dois lados da moeda, como mãe de interno e como funcionária, isso me deu uma base e uma experiência profissional que mesmo em 30 anos de trabalho não conseguiria entender certos processos e situações que só compreendi quando vivenciei e sentir a dor na própria pele.
Agradeço a Deus por ter feito do meu filho instrumento para unir nossa família, que já estava aos poucos se desestruturando. Hoje o meu filho se encontra junto ao Senhor, mas tenho certeza que um dia nos encontraremos na eternidade. Alguns meses antes do seu falecimento ele estava freqüentando uma igreja evangélica e tenho certeza absoluta que morreu na presença do Senhor Jesus e ainda foi instrumento para levar toda a família até Deus, além de outros milhares de pessoas que leram uma carta que ele me escreveu uma semana antes do seu falecimento. Essa carta circula em várias igrejas e encontros para jovens. De certa maneira ele conseguiu colocar final feliz nessa história triste.
